sábado, 23 de maio de 2009

Papo sério (atualizado)


"Emerson Abreu tem 34 anos e há 13 escreve roteiros para a Turma da Mônica. Nascido no Rio, crescido em São Paulo e atualmente morador da cidade de Jundiaí, o rapaz mantém um blog onde fala de música, vídeo-game e, como não poderia deixar de ser, quadrinhos.

Após uma polêmica com a publicação de uma matéria no site A Capa sobre gírias gays no número 5 da revistinha Turma da Mônica Jovem, a reportagem entrou em contato com o cartunista para que ele desse seu ponto de vista sobre a questão e falasse sobre a personagem Denise, que acabou adotando como sua preferida.

Em entrevista exclusiva, Emerson explica a origem da personalidade de Denise, influenciada por elementos como a cena clubber paulistana da década de 90 e até a drag Silvetty Montilla. O roteirista fala ainda sobre a aceitação da personagem, o preconceito dos jovens leitores e dá dicas para quem se interessa e quer trabalhar na área de quadrinhos."


================================


Essa foi, de longe, a entrevista com as perguntas mais inteligentes que eu já respondi. Só me resta agradecer mais uma vez ao brilhante William Magalhães e ao site A Capa pela oportunidade!

Confiram a entrevista na íntegra bem aqui.

ATUALIZAÇÃO: Por algum motivo o site acima não está exibindo a matéria completa. Segue abaixo um copy/paste da entrevista:


================================
 




Fale um pouco sobre você.
Eu tenho 34 anos, nasci no Rio de Janeiro, cresci em São Paulo e atualmente moro em Jundiaí. Não fiz faculdade (sou contra esse tipo de "formalidade" para a classe artística), mas fiz alguns cursos de desenho e roteiro aqui e ali. Não sou casado, mas estou num relacionamento sério há quase cinco anos.

Há quanto tempo escreve roteiros para HQ?
Escrevo roteiros pra Turma da Mônica há 13 anos, então tem toda uma geração aí que cresceu lendo minhas histórias.

Além de fazer os roteiros, também desenha?
Sim. Antes de ser contratado pela Maurício de Sousa Produções eu trabalhava como ilustrador num estúdio de publicidade. Para a MSP eu ilustrei o livro "O Gênio e as Rosas" (com textos de Paulo Coelho), criei uma série de estampas para o estilista Thiago Marcon do Projeto Fábrica Morumbi Shopping e também ilustrei alguns contos que saíram publicados em livros e gibis.


Como ingressou na carreira?
O pontapé inicial foi um curso de quadrinhos que eu fiz aos 17 anos ministrado por Klebs Júnior (atualmente um dos diretores da Escola Impacto de Quadrinhos). Ali eu tive meu primeiro contato com profissionais do ramo e percebi que faria isso pelo resto da vida. Depois de passar um tempo desenhando para editoras menores, eu trabalhei durante três anos como ilustrador no Núcleo de Arte. Por fim, aos 21 anos, mandei um portfólio pra MSP e estou lá desde então criando histórias em quadrinhos e escrevendo roteiros de desenhos animados para cinema e DVD.

O que serve de inspiração na hora de escrever uma história?
Qualquer coisa pode virar uma história. Você pode ter uma ideia enquanto assiste a um filme, no meio de uma conversa de bar ou jogando vídeo-game. No entanto, a maioria das minhas histórias vem de fatos que aconteceram na minha infância, então quanto mais experiência de vida, mais assunto você vai ter para escrever. Mas o mais importante mesmo é ler muito, não importa o que seja (livro, gibi, jornal ou até mesmo um blog na internet), desde que você esteja sempre alimentando sua mente com informações novas.


Fale um pouco da sua relação com a Denise.
Antes de eu "adotá-la" como personagem favorita, a Denise era apenas uma coadjuvante das histórias da Magali criada pela roteirista Rosana Munhoz na década de 80. Mas até então ela não tinha uma personalidade bem definida (e nem mesmo um visual padronizado), só aparecia de vez em quando fazendo fofocas e criando intrigas entre as meninas. Na década de 90 eu achei que a personagem poderia render mais se tivesse um pouco mais de atitude, já que papas na língua ela não tinha mesmo. Nessa época, a cultura clubber estava no auge e eu resolvi enriquecer o seu vocabulário com algumas gírias para mostrar que ela era uma menina mais antenada com o mundo atual (e também porque eu achava engraçado o fato de ninguém entender absolutamente nada do que ela dizia). Expressões como "Se joga", "Acredita no bate-cabelo" e "Abafa o caso" começaram a brotar nas revistinhas bem antes de caírem no gosto popular.


Com o passar dos anos ela se tornou a mais autêntica das personagens da Turma da Mônica, sem medo de falar o que vem à cabeça, às vezes irônica e sarcástica, sua sinceridade machuca e é interpretada erroneamente como "grosseria" por alguns leitores. Enquanto as outras meninas do gibi são românticas, meigas e sonhadoras, a Denise tem uma visão mais cínica em relação ao mundo, é mais inteligente, descolada e realista. Entretanto, ela não é perfeita, ela erra (e erra muito), mas nesse caso ela sempre quebra a cara e aprende sua lição no final da história. É a velha fórmula de mostrar bons exemplos através de contra-exemplos.


Hoje em dia eu utilizo a personagem como uma espécie de válvula de escape. Tem muita coisa que eu vejo por aí que me incomoda. A sociedade ensina às crianças que é "normal" levar uma vida fútil baseada em status e desperdiçar seu tempo preocupado com "o que os outros vão pensar". A Denise vem na contramão desse comportamento, mostrando que é muito mais saudável levar uma vida autêntica e sem mentiras, doa a quem doer. Tem gente que me condena por colocar minhas opiniões desse modo nas histórias, mas é da natureza de qualquer escritor ser crítico e inconformado com o mundo. Roteiristas têm a obrigação de serem relevantes e precisam ter algo a dizer. Se você quer ingressar no ramo só porque gosta de ler quadrinhos é melhor que fique apenas lendo mesmo. Não há sentido nenhum em entrar nessa se você não vai trazer nada de novo pra indústria.

A personagem é gay?
Não, a Denise não é gay. Ela só se interessa por homens mesmo. Ela já namorou o Ricardinho e hoje em dia tem um leve interesse pelo Titi.


Há possibilidade de surgir um amigo gay da Denise?
Bom, eu não posso falar pelo Maurício, mas na minha opinião é muito difícil. O fato é que o grande público ainda não está pronto para aceitar um personagem assim. Suponho que a culpa venha da formação retrógrada que os filhos recebem dos seus pais. Eles têm uma visão muito estreita do que consideram "bom para a criança ler". Lembro de uma ocasião em que eu escrevi uma história da Magali sobre reencarnação. Os pais católicos odiaram! Acharam que eu estava colocando conceitos religiosos deturpados na cabeça dos seus filhos. Já os espíritas adoraram e até utilizaram esse roteiro para explicar às crianças, de um modo simplificado, o que é reencarnação. Houve também, o caso da história da separação dos pais do Xaveco. Muita gente dizia que era um absurdo abordar um tema tão polêmico numa revista voltada ao público infantil! Em contrapartida, as mães separadas elogiaram a iniciativa porque seus filhos sentiam-se alienados lendo as histórias da Mônica, onde toda família era perfeita e todo mundo tinha pai e mãe!


Se esses dois casos causaram toda essa celeuma, imagine só o que um personagem gay causaria...


Apesar das gírias gays já estarem inseridas na sociedade devido ao espaço na mídia, como você tomou conhecimento delas?
Eu sou gay assumido desde os 21 anos. Nessa época eu acabei conhecendo muita gente que falava assim. No início eu realmente não entendia nada do que eles diziam...

Você tem amigos gays?
Já tive muitos, mas hoje em dia meu círculo social é formado praticamente por héteros.

Já assistiu a shows de drags?
Antigamente eu gostava dos shows da Silvetty Montilla. Suas respostas rápidas e seu raciocínio ágil e inteligente serviram, mais ou menos, como uma inspiração inicial para o jeito escrachado de ser da Denise. É muito divertido, mas chega uma hora que cansa. Atualmente eu só saio de casa se for pra tomar chope num barzinho ou numa casa de rock alternativo. É a idade pegando...

Como o público assimilou as gírias da Denise?
Não muito bem. Atualmente a aceitação é bem maior, mas alguns leitores ainda reclamam dizendo que as gírias nas histórias em quadrinhos atrapalham o aprendizado da língua portuguesa. Uma bobagem.

Em um post no seu blog você chegou a dizer que a personagem já foi chamada de "mini puta" e "mini drag". Como você recebeu esse tipo de comentário? E, na sua opinião, a que se devem comentários desse nível?
É muito triste saber que ainda hoje existem tantas pessoas que rotulam o comportamento dos outros dessa maneira. Se uma menina tem um pouco mais de atitude e não se faz de vítima o tempo todo ela é tratada com desprezo. Na verdade eu já comprei briga com muitos leitores por causa disso. Muitos deles achavam que a Denise era um mau exemplo pras crianças, mas hoje em dia ela tem um exército de fãs que compraram essa briga por mim.


No site A Capa, após a publicação da primeira matéria, alguns fãs e internautas se revoltaram com a notícia, querendo "limpar" talvez uma "pecha gay" da personagem. Por que acha que isso aconteceu? Acredita que talvez tenham ligado gírias gays a algo ofensivo?
É claro que sim. Infelizmente, na sociedade em que vivemos, qualquer coisa que tiver uma leve conotação gay é tratada como uma ofensa à moral e aos bons costumes. Existem alguns fãs da Denise que acham suas gírias engraçadas, mas quando descobrem que são expressões gays, eles partem para a defensiva. Tentam argumentar dizendo que as gírias não são gays, que esse é apenas o jeito de falar de qualquer patricinha dos dias de hoje... Provavelmente são pessoas que não sabem que essas expressões existem há mais de 13 anos.

Nas histórias da Turma da Mônica também é comum haver inversões de papéis de gêneros, quando a Mônica acorda e virou menino ou os personagens masculinos usam roupas femininas. Acredita que de certa forma isso ajuda a separar a dicotomia de meninos x meninas ou essa inversão é muito mais pra fazer humor?
Na grande maioria das vezes é apenas uma inversão criada para fazer humor. Mas em alguns casos essas histórias são usadas para quebrar aqueles velhos tabus que ditam que só os meninos jogam bola e que lugar de mulher é no fogão. Nos roteiros da turma da Mônica não existe nenhum elemento oculto ou mensagem subliminar escondida, na verdade a mensagem é a mais clara possível.


Você também escreve roteiros para a Turma da Mônica Jovem?
Por enquanto eu só escrevi a história "Os Meninos são todos iguais" que saiu na edição de número 05 (Coincidentemente aquela em que a Denise apareceu).

As gírias GLS da Denise estiveram presentes na edição 5 da TMJ quando foi investido nas histórias cotidianas. Mas a edição atual (na época em que a entrevista foi feita) é uma saga de ficção científica. Investir nessas aventuras intergaláticas é orientação da editora, pedido do público ou nem uma das anteriores?
É uma forma de agradar todos os diferentes leitores da revista. Primeiro houve uma história envolvendo vários elementos comuns aos mangás (do número 01 ao 04), depois o público pediu histórias curtas envolvendo assuntos cotidianos (número 05) e, agora que temos o Marcelo Cassaro trabalhando conosco, a aventura intergalática é a bola da vez. Ele é um dos melhores roteiristas de mangá do Brasil e sua especialidade é exatamente a ficção científica.

Qual é a maior faixa etária do público leitor de TMJ?

Não tenho dados exatos para responder essa pergunta. É claro que conseguimos uma nova leva de jovens adultos que voltaram a ler revistas em quadrinhos no meio desse processo, mas eu tenho a impressão de que a faixa etária permanece a mesma da linha infantil.


Histórias do cotidiano não causariam mais empatia do público que consome as revistas da TMJ?
Não necessariamente. É tudo uma questão de saber dosar os elementos. Não importa se o roteiro se passa no Bairro do Limoeiro, no passado medieval, ou num futuro espacial, o que conta mesmo é o carisma dos personagens e a identificação do público. Além disso, para os fãs de histórias do cotidiano nós já temos a linha da Turma da Tina. O público adolescente, acostumado às grandes sagas dos animês, prefere aventuras mais elaboradas e emocionantes, com heróis intergaláticos ou não.

O Maurício de Sousa afirmou recentemente em entrevista à Veja que sempre pedem para que ele faça um personagem gay. Acredita ser possível um personagem gay na Turma da Mônica?
Como eu disse anteriormente, não acredito que seja possível, pelo menos não num futuro próximo. Mas na minha opinião isso abriria uma porta gigantesca para a aceitação dos gays na sociedade, porque muito do preconceito existente hoje nas famílias brasileiras é moldado desde a infância. As crianças já crescem com a visão errada de que o único relacionamento "sério" e "digno" é aquele formado entre um homem e uma mulher. Quando uma criança assiste aos programas humorísticos da TV (como o "Zorra Total") ela acaba acreditando que ser gay é ser motivo de piada e de chacota. Não estou falando que criar um personagem gay influenciaria nossos leitores a seguir esse caminho, o que eu estou dizendo é que as outras crianças aceitariam esse amigo "diferente" com muito mais naturalidade.

Se as crianças tivessem um contato mais cedo com as diversas "alternativas" existentes no mundo elas cresceriam muito mais resolvidas com sua própria identidade. E isso não se aplica apenas à aceitação da sexualidade, mas também à aceitação das diferentes religiões, filosofias de vida e quaisquer outras escolhas que elas terão que enfrentar no futuro.

Eu sei que uma história em quadrinhos tem apenas a obrigação de ser lúdica, interessante e divertida. Mas nós, como roteiristas, temos em nossas mãos a ferramenta de educação mais poderosa do país, afinal de contas todas as crianças do Brasil aprendem a ler com os gibis da Turma da Mônica. É uma responsabilidade imensa nas costas. Não quero parecer pretensioso, mas uma palavra utilizada da maneira certa em uma história pode ser o estopim pra uma mudança muito maior no futuro dessas pessoas. Estamos lidando com a Teoria do Caos todos os dias aqui. Ser roteirista é ter o poder de colocar a sua forma de ver o mundo na cabeça de milhares de leitores todos os meses. Você pode não concordar, mas é a mais pura verdade!

Abração!