De vez em quando eu recebo entrevistas (via email) de alunos de faculdade que estão fazendo algum trabalho sobre quadrinhos, criação de roteiros, Turma da Mônica ou sobre o próprio Maurício de Sousa. Frequentemente as perguntas são muito parecidas, girando em torno das mesmas questões...
Na semana passada eu recebi mais uma entrevista, dessa vez as perguntas vieram da leitora Gabriela Lima, que cursa Publicidade na ESAMC. Diferentemente dos outros "questionários", dessa vez o trabalho era sobre o mito da criatividade e as perguntas eram bem pertinentes, curiosas e muito interessantes de responder.
Achei que seria oportuno postar a entrevista aqui, já que muita gente pode ter as mesmas dúvidas sobre esse assunto. Senta que lá vem história...
1) Você se considera criativo?
Bom, acho que essa é uma das características principais do meu trabalho. É quase uma obrigação que eu me imponho a cada mês: "Não escrever histórias com temas repetidos, surpreender o leitor e buscar o inusitado."
2) Que características uma pessoa criativa precisa ter?
_ Pra começar você precisa ter muita sede de leitura e conhecimento. Ninguém que não goste muito de ler e de acompanhar o que acontece nessa área (cultura e entretenimento) vai conseguir criar um trabalho original. Por exemplo, se você quer ser um roteirista da Turma da Mônica, mas lê apenas os gibis da Turma da Mônica, não vai trazer nada de novo para a revista. Seu repertório é muito limitado, você vai se basear sempre em histórias que já foram contadas e reciclar velhas idéias que outros roteiristas já tiveram.
_ Para estimular a criatividade, o escritor/publicitário/ilustrador precisa ter um vasto repertório de referências na cabeça. Leia de tudo. Catálogos, livros, gibis europeus, americanos, alternativos, tiras de jornal, revistas informativas e até mesmo campanhas editoriais. Assista filmes, desenhos animados, comerciais, seriados de tv, acompanhe tudo o que está acontecendo no mundo da arte, busque idéias em todos os lugares. Quanto mais cultura você absorver, mais material a sua mente vai ter para trabalhar. Esse excesso de informação é o que dá forma à criatividade. Com todos esses elementos fervilhando na sua cabeça você poderá criar o que quiser.
_ Seja original. Jamais copie uma idéia e nem caia nas armadilhas do “hype”. Não importa que Harry Potter esteja fazendo sucesso, você não vai criar um bruxinho pra tentar fazer dinheiro fácil. Se vampiros adolescentes estiverem na moda, você não precisa criar mais uma leva de vampiros adolescentes só para ganhar visibilidade. Idéias copiadas tiram toda a credibilidade do autor. Você tem que acreditar na originalidade do seu produto e ter muita coragem para ir contra a correnteza, mas depois de algum tempo você vai perceber que são os outros (que não têm criatividade) que tentarão copiar suas idéias e pegar carona no seu estilo.
_ Adquira fluência na língua. Escreva muito, mas não escreva nada em “internetês” ou você vai acabar pegando manias muito difíceis de largar no futuro.
_ Seja relevante. Um escritor geralmente escolhe essa carreira para ter o poder de pregar um ponto de vista divergente do resto da sociedade. É o eterno contestador, naturalmente inconformado com o mundo. Ele tem que chocar e fazer pensar.
3) Acha que todos nascem criativos ou isso é para poucos?
Criatividade é somente uma questão de treino. Ninguém nasce com “talento” para desenhar, pintar ou escrever. O que existe são pessoas mais interessadas em aprender e crescer, pessoas com sede de evolução. Se você gosta muito de alguma coisa, vai querer investir seu tempo nisso e conseqüentemente vai acabar se tornando um profissional de respeito. O que eu mais vejo por aí são pessoas preguiçosas que acham que tudo vem de mão beijada. Elas não imaginam o empenho e dedicação que está por trás de cada trabalho. É mais fácil dizer que tal pessoa já nasceu com “o dom” e desistir dos seus sonhos, do que arregaçar as mangas e lutar para conquistar o seu espaço.
Como qualquer outra carreira, esse trabalho tem que ser encarado com muito esforço e seriedade. Da mesma forma que um atleta passa 24 horas por dia treinando, um artista precisa estar 24 horas por dia lendo, escrevendo, desenhando e buscando referências para desenvolver (e treinar) seu potencial criativo. E muita gente desiste no meio dessa jornada por falta de dedicação.
4) Como você desenvolve e treina seu potencial criativo?
Como eu disse anteriormente, eu leio muito e tento me manter o mais atualizado possível dentro das áreas de cultura e entretenimento. Uso todo o meu tempo disponível para acompanhar o que os outros colegas de profissão estão fazendo, pesquisando (com muito bom senso para separar o que pode ser usado como futura referência e o que deve ir direto pra lata do lixo), criando novas formas de se contar uma história e buscando inspiração na vida real. É só estar de antena ligada o tempo todo para absorver as informações, processá-las e transformar esse material bruto em novas idéias. Dessa maneira, você percebe que tudo pode virar uma história. Sua infância, o modo de comportamento das pessoas, uma discussão que você teve com o namorado, um texto da internet, um programa na tv, um vídeo do YouTube, um game que você joga, uma crítica à sociedade, até mesmo uma conversa de bar. Seguindo esse raciocínio, eu anoto cada idéia que surgir, por mais estranha que possa parecer. Se eu acho que pode render um bom roteiro, eu escrevo e guardo. Gosto de deixar a idéia cozinhando durante vários dias (ou meses) na minha cabeça e, só então, quando eu acho que ela está madura, eu começo a construir o roteiro.
Eu também procuro sempre trabalhar de noite. Rende muito mais. Trabalhar de noite é mais tranqüilo (não tem ninguém para te distrair) e você já está com a cabeça recheada de novas informações que colheu durante o dia. A mente tem muito mais material pra funcionar.
Porém, criatividade não é nada sem técnica. Um bom escritor pode transformar uma idéia aparentemente boba numa obra de arte com a mesma facilidade que um escritor medíocre pode estragar uma idéia genial se não souber o que está fazendo. Tudo depende da maneira com a qual você conta uma história.
5) Que influências você recebeu, e ainda recebe, para construir seu repertório pessoal?
No início da minha carreira, como eu já não tinha contato com histórias infantis há muito tempo, eu usava como referência os quadrinhos que eu lia na minha infância, como as antigas aventuras do Tio Patinhas (escritas por Carl Barks) e as tirinhas do Calvin (de Bill Watterson). Mesmo assim, naquela época, o meu senso de humor foi considerado um pouco (ou muito) cínico para a Turma da Mônica. Tive que me dobrar um pouco para me encaixar no padrão da casa, mas aos poucos eu fui criando um estilo meio debochado de roteiro que me agradava mais e isso acabou atraindo os adolescentes e jovens adultos de volta para os quadrinhos da Turma. O fato é que trabalhar com humor é uma tarefa complicada. Ele muda muito de geração pra geração e, felizmente, hoje em dia o público da Turma da Mônica aceita com muito mais naturalidade as piadas ácidas, irônicas e sarcásticas que eu escrevo. Não precisa mais ser tudo tão “mel com leite”.
Atualmente eu acompanho bastante o trabalho do pessoal que cria tiras para internet como Allan Sieber, André Dahmer, Arnaldo Branco, Raphael Salimena, Ricardo Tokumoto e as tiras do Wagner & Beethoven.
Na área dos desenhos animados eu acho interessante o ritmo e a abordagem das Trapalhadas de FlapJack e as críticas sociais muito inteligentes de Family Guy e American Dad.
6) Como você faz para fugir do lugar-comum em suas histórias?
Primeiramente eu procuro sempre imprimir uma personalidade forte (alma) nos personagens, imaginá-los como pessoas de verdade (com uma dose extra de drama, é claro) e não tratá-los apenas como bonequinhos que andam e falam. Caso contrário, a história vai acabar parecendo falsa e artificial. Ainda que eu faça uso de elementos mais surreais e nonsense nos meus roteiros, os personagens precisam ter uma motivação válida por trás de suas atitudes. Seu raciocínio deve fazer sentido naquele mundo onde ele vive e respira, mesmo por trás das mais absurdas decisões.
Como as revistas da Turma da Mônica possuem um público imenso e totalmente diversificado, ao escrever uma história, eu procuro pensar em todos os leitores que vão ter acesso ao gibi. Não é porque ele também atinge o público infantil que as histórias precisam ser bobas, simplistas e burras. Histórias bem sacadas e inteligentes agradam sempre. Por causa disso, cada roteiro pode ser lido em várias camadas de complexidade, uma para cada tipo de leitor:
_ Se é uma criança que está lendo o gibi, ela vai curtir os personagens, as trapalhadas e as gags visuais.
_ Há também o leitor mais fiel, que lê todo o universo da Turma da Mônica, com um nível de conhecimento mais rebuscado, que vai procurar (e encontrar) pequenas referências escondidas para comentar e discutir com os outros fãs.
_ Tem também as pessoas que compram o gibi na banca e já saem lendo, dentro do ônibus, no caminho pra casa. Elas querem entender a história rapidamente e querem piadas fáceis.
_ E, finalmente, existe um outro tipo de leitor, mais maduro e experiente, que vai conseguir identificar diversas críticas sociais e comportamentais por trás de cada situação. Tenho certeza de que, nesse caso, o leitor acaba se identificando, percebendo suas falhas, rindo de si mesmo e, quem sabe até, mude de atitude no futuro.
Minha meta é simples. Nunca dar ao leitor o que ele espera de uma história. No momento de escrever um roteiro, procuro não cair no velho papo de “dar ao público o que o público quer”. Essa é uma fórmula fácil e rápida de agradar, mas acaba se desgastando com o tempo. Quero sempre puxar o tapete, fugir do lugar comum e inovar a cada nova edição. Caso contrário, as revistas acabam inevitavelmente se repetindo, girando sempre em torno dos mesmos temas e não evoluem. Geralmente os leitores, principalmente os mais antigos, já vêm com uma idéia pré-determinada do tipo de histórias que eles gostariam ler. Eles têm medo de mudanças e não aceitam nenhum tipo de inovação. Isso limita muito a imaginação do roteirista.
Se os artistas ouvissem somente o público, continuando a produzir apenas “mais do mesmo” e não acreditassem em suas próprias idéias e na força da sua criatividade, ainda estaríamos desenhando homens-palitos nas paredes das cavernas.